Karen, de Ana Teresa Pereira


Antes de ler Karen, livro vencedor do Prémio Oceanos em 2017, comecei pela leitura de alguns contos desta escritora: Ana Teresa Pereira. Autora discreta que, não obstante, apresenta uma extensa carreira literária, com mais de quarenta obras publicadas, algumas delas premiadas.

Ao explorar cada conto, notei logo algo de muito particular, muito singular na sua escrita, que é estranha, mas, ao mesmo tempo, fluída e consegue viciar. São os temas, são os cenários, são as personagens, cujos nomes por vezes se repetem; contudo, todos eles contam histórias diferentes.

E sobre Karen: o que nos conta Ana Teresa Pereira nesta história?

Narrado na voz da protagonista, começamos com uma descrição da nossa personagem a caminhar por Londres em direção a uma galeria. Supõe-se que é pintora, que não consegue viver sem os seus quadros, as suas telas, as suas tintas, os seus pincéis.

Até que acorda numa cama, num quarto, numa casa que desconhece. Dói-lhe o tornozelo, apresenta ferimentos, uma cicatriz na testa. Observa as fotografias que se encontram nas mesas de cabeceira: «Um homem de uns trinta e poucos anos, com o cabelo preto e os olhos muito azuis e um dos rostos mais atraentes que já vira. (...) Eu nunca o vira antes.»; «... a princípio não reconheci a rapariga na foto. (...) Com um estremecimento, percebi que a rapariga era eu.»

«Compreendi que tinha de estar na defensiva, não deixar transparecer a angústia que ameaçava tornar-se em medo.» E assim é o início deste jogo de ambiguidades. Ela, a protagonista, é tratada por Karen, tanto por Alan (o marido, o homem da fotografia) como por Emily, a governanta (aparentemente de meia-idade) da casa em Northumberland. Receando ser descoberta, pois considerava não ser a mulher a quem apelidavam por aquele nome, aos poucos vai descobrindo um pouco mais sobre si — ou melhor dizendo, sobre Karen —, na expetativa de recuperar a memória que, ao que tudo indicava, havia perdido aquando do acidente na cascata.

«Imagining... no, remembering... estava a tornar-se difícil separar o que imaginava do que recordava». Até que ponto Karen e a protagonista eram apenas uma só, ao partilharem o mesmo rosto, o mesmo corpo, a mesma alma? «Não eu, Karen. Havia momentos em que quase nos confundíamos uma com a outra.» É sobre esta permanente dúvida que a narrativa se debruça. Será que estamos perante um caso de transtorno dissociativo de identidade?

À medida que se aproxima o seu aniversário — leia-se, o de Karen —, Alan e a nossa protagonista recuperam (ou iniciam) a sua cumplicidade: «Era um amor grave, o nosso, quase soturno...». Ao completar vinte e cinco anos, Karen tornar-se-ia numa herdeira. Alan, escritor falido, oriundo de uma família aristocrata, tradutor de línguas nórdicas, fascinando pelos fiordes noruegueses, que gosta de viajar sozinho, afirma (mais que uma vez) que se casou com ela por dinheiro. Afinal, qual era a verdade?

Uma escrita poética, com um laivo de encantatório, num constante desequilíbrio entre o que é real ou fantasiado, com cenários repletos de flores, de chuva, de neblina. Uma história marcada pela presença de elementos cinematográficos, pontuada por nomes da literatura inglesa.

A rotina: o passeio no jardim com Sam, o cão; biblioteca, séries policiais. O portão, o autocarro, o comboio. O acidente na cascata: o que terá, de facto, acontecido? A história termina no ponto em que começa, onde há informação que é retirada e outra que é acrescentada. Obsessão, repetição: a história é contada em círculos. Uma releitura permite-nos encontrar outras pistas que, à primeira vista, não tínhamos tido em consideração para desvendar o mistério, o enigma que se apresenta. Será que assistimos, de facto, a uma transformação da nossa protagonista? Ou será este o seu modo de funcionamento, em que a história volta a repetir-se? Um final em aberto, suscetível a mais do que uma interpretação. Eu tenho a minha. Qual será a tua?

Susana Barão


Comentários

  1. Não começo a autora. Nunca li nada dela. Mas gosto de me aventurar por novos estilos. E esta descrição bem pode ser o motivo para eu ir conhecer as personagens, descobrir o enredo e tentar imaginar uma versão para o final. :-D

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    1. Fico então a aguardar pela tua interpretação do final desta história! ;)

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  2. Desconhecia por completo esta escritora.
    Não sei se fará o meu género pelo toque fantasioso que dizes que o livro tem, mas sinto-me tentada a experimentar :).

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    1. Às vezes, faz bem sairmos da nossa zona de conforto =) Reconheço que pode ser um livro que não agrade à maioria, mas vale a pena conhecer a qualidade e a beleza da escrita desta autora, ;)

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