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As Moscas de Outono, de Irène Némirovsky

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  Eles iam, vinham, de um muro ao outro, silenciosamente, como as moscas de Outono, quando o calor, a luz e o verão aparecem, voam penosamente, exaustas e arreliadas, contra os vidros, arrastando as asas mortas. (p. 52) De uma vida de ostentação até à decadência material e dos costumes. A imagem invocada pela citação acima remete-nos para um sentimento de indiferença e da perda de um propósito. Esta história inicia-se e termina na véspera da mesma data festiva. Há um paralelismo que se estabelece, diferenças e semelhanças que se acentuam. Tudo mudou para a família Karine, que, na sequência da Revolução Russa, iniciada em 1917, se vê obrigada, um ano depois, a fugir da sua casa, refugiando-se, mais tarde, num modesto e precário apartamento em Paris. Para trás, e a cuidar da propriedade e dos pertences desta família da alta nobreza, ficou Tatiana Ivanovna, cuidadora de duas gerações dos Karine e uma empregada fiel e disponível para os seus pedidos. Mulher rija e devota a Deus, apesar da

Somos o esquecimento que seremos, de Héctor Abad Faciolince

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DA ESCRITA DAS MEMÓRIAS PARA EVITAR O ESQUECIMENTO DE QUEM FOI VÍTIMA DA INJUSTIÇA E DA VIOLÊNCIA Só mais tarde olharei para eles: um, é a lista dos ameaçados de morte, uma fotocópia, e o outro, o «Epitáfio» de Borges copiado com o seu punho e letra, salpicado de sangue: «Já somos o esquecimento que seremos.» (p. 300) Em 25 de agosto de 1987, na cidade de Medellín, Héctor Abad Gómez, pai do escritor, é assassinado por paramilitares. Decorridos mais de vinte anos, Héctor Abad Faciolince decide escrever e publicar «Somos o esquecimento que seremos», um livro dedicado ao seu pai e às memórias de uma época conturbada e de crescente violência política na Colômbia dos anos setenta e oitenta. Seguindo uma ordem cronológica dos acontecimentos, ainda que o registo se apresente fragmentado, algo comum neste género literário, vamos conhecendo a infância e a adolescência do autor, assim como a sua família e a relação de grande proximidade (e, quiçá, de alguma dependência) com o seu progenit

Erros de Português nunca mais, de Analita Santos

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  PORQUE ESCREVER BEM EM PORTUGUÊS IMPLICA CONHECER E SABER USAR A NOSSA LÍNGUA São as palavras que nos aproximam ou afastam dos outros, por isso, é decisivo saber utilizá-las da forma mais apropriada possível. (p. 11) Conteúdo e forma. Escrever é isso: preocuparmo-nos com o conteúdo, as ideias que pretendemos transmitir, ao mesmo tempo em que procurarmos a melhor forma de o fazer. Aquando da redação de um livro, devemos ter presente a quem nos dirigimos, isto é, definir muito bem o nosso público-alvo. Em «Erros de Português nunca mais», a Analita Santos demonstra esse cuidado, desde a introdução, passando pelos seis capítulos que compõem este livro, até às últimas páginas (considerações finais). Os capítulos um, dois e três dedicam-se à forma: — No primeiro (e mais extenso), a autora apresenta, de A a Z, algumas subtilezas e erros comuns de quem fala e escreve em português padrão, tentando, em grande parte dos casos apresentados, ilustrar a correta utilização com trechos ex

A Malnascida, de Beatrice Salvioni

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  SOBRE AMIZADE E CORAGEM DE DUAS MENINAS NA ITÁLIA FASCISTA DOS ANOS TRINTA — As palavras são perigosas, se as disseres sem pensar. (p. 90) Os habitantes de Monza atribuíam a Malnascida (criança corajosa, obstinada e atenta ao contexto em que se encontrava inserida) a culpa pelas fatalidades daqueles que se aproximavam dela; porém, ela chamava-se Maddalena, sendo órfã de pai e a terceira de quatro irmãos da família Merlini, de origem humilde. Francesca, narradora e também protagonista desta narrativa, era uma menina italiana a entrar na puberdade, e oriunda de uma família burguesa cujo pai detinha uma fábrica que se dedicava à produção de chapéus. A mãe, nas suas palavras, «preferia-me bem-educada a instruída.» (p. 60); Maddalena, aos seus olhos, simbolizava a irreverência e a liberdade que lhe haviam vedado. Partindo de um ato de desobediência, nasce o primeiro contacto entre Francesca e Malnascida. Os principais acontecimentos do enredo ocorrem nas margens do rio Lambro, que

Os Vampiros, de Filipe Melo e Juan Cavia

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UMA NOVELA GRÁFICA SOBRE A GUERRA COLONIAL PORTUGUESA Os únicos vampiros aqui… somos nós. (p. 218) Inspirada numa das canções mais emblemáticas na luta contra o Estado Novo, «Os Vampiros», de Zeca Afonso (escrita nos anos 1960), serviu de inspiração a esta novela gráfica com argumento de Filipe Melo e ilustrações de Juan Cavia, que nos conta um episódio ocorrido durante a guerra colonial portuguesa numa das suas três frentes. Guiné, dezembro de 1972. Destacados para uma operação especial de reconhecimento, um pequeno grupo de militares portugueses, em plena véspera de Natal, atravessa a fronteira para o Senegal, em busca de uma da bases do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde). Esta narrativa, ainda que ficcionada, pretende traçar um retrato daquela que foi a realidade vivenciada por soldados pouco preparados para combater e defender o território de um povo que, há muito, pretendia conquistar a sua independência e deixar de se reger pelas regras da

Um Detalhe Menor, de Adania Shibli

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  DUAS PERSPETIVAS NARRADAS EM DIFERENTES RITMOS SOBRE UM MESMO ACONTECIMENTO De facto, há uma propensão, possivelmente instintiva, para o indivíduo acreditar na sua própria singularidade, para encarar a vida que leva como algo tão importante que só pode amá-la e amar tudo o que lhe diz respeito. (p. 81) O agravamento do conflito no Médio Oriente e o adiamento, por tempo indeterminado, da entrega do prémio LiBeraturpreis à escritora palestiniana Adania Shibli levaram-me a organizar um pequeno grupo de leitura conjunta de «Um Detalhe Menor», editado em março de 2022 pela @domquixoteeditora e traduzido do árabe por Hugo Mata. Ainda que ficcionada, a história deste livro baseia-se num trágico acontecimento ocorrido um ano depois da Nakba, com a expulsão dos palestinianos das suas aldeias e da criação do Estado de Israel. A narrativa divide-se em duas: na primeira, contada na terceira pessoa do singular e pela perspetiva do invasor, acompanhamos a jornada diária de um comandante i

Sempre Vivemos no Castelo, de Shirley Jackson

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DE UMA HISTÓRIA INTRINCADA, COM VESTÍGIOS DA NARRATIVA DE EDGAR ALLAN POE Eu já sabia que ele era um dos maus; vira o seu rosto por instantes e ele era um dos maus, aqueles que dão a volta à casa, a tentar entrar, a olhar pelas janelas, a puxar e a espreitar e a roubar recordações. (p. 69) Tratando-se do último romance publicado pela escritora norte-americana Shirley Jackson, «Sempre Vivemos no Castelo» conta-nos a história dos Blackwood pela voz de Mary Katherine — ou Merricat, como Connie, a irmã mais velha, apelida de forma carinhosa —, uma jovem de dezoito anos que residira num orfanato aquando do julgamento de Constance, acusada de assassinar a família por envenenamento durante o jantar e que, entretanto, havia sido ilibada. As duas irmãs, ostracizadas pelos habitantes de uma aldeia próxima, residem «enclausuradas» na grande casa dos Blackwood, juntamente com o tio Julian, inválido e dependente de cuidados de terceiros, e do gato Jonas, companheiro de aventuras de Merricat.