A Avó e a Neve Russa, de João Reis


«Na cozinha, fico junto ao fogão enquanto a água aquece dentro da chaleira. Quero ficar aqui por uns minutos, sem ter de ver a cara da Babushka tornar-se vermelha e depois azul, ao tossir, sem que eu possa fazer nada.»

Este é o retrato do quotidiano de um menino de dez anos — protagonista e narrador desta história —, o neto mais novo de uma idosa russa, emigrante no Canadá, vítima dos ventos atómicos que inspirou aquando do acidente nuclear ocorrido em Chernobyl.

Porém — a palavra que este menino não se cansa de utilizar —, não conformado com a doença da avó, o nosso protagonista parte em busca de algo, algures no México, que possa curá-la, salvar a sua família, e evitar ser enviado para um orfanato e separado do seu irmão mais velho de dezoito anos, Andrei, que se refugia numa névoa de fumo ao som de música alta.

Partindo de uma premissa simples, ainda que o cenário apresentado ao leitor não deixe de ser dramático e complexo, o escritor João Reis consegue, através do ponto de vista de uma criança, tecer considerações filosóficas — «Sim, sou observador e capaz das minhas conclusões.» —, dando palco a diversas questões de injustiças sociais e políticas, mas sem esquecer a idade do protagonista.

Note-se o caso do chinês, que trabalha nas limpezas e à noite estuda francês num quartinho minúsculo e mal iluminado, ou o nigeriano (a propósito da idade) que vende rebuçados e, de acordo com as palavras do menino, é vítima de «xenofilia»; logo aqui percebemos, que apesar de possuir um vasto vocabulário, nem sempre conhece o verdadeiro significado e alcance das palavras que utiliza.

O capitalismo e o comunismo assumem presença assídua nas palavras desta criança: «Se se distribuir por todos, nunca se terá muito: o mundo é mesmo assim, capitalista, e eu concordo. Nós não queremos cá nada com os comunistas: bem se sabe como cuidam dos cidadãos.»; «Ah, pois claro eu tenho ideias. E a minha é ser um capitalista e comprar todas as medicinas do mundo para salvar a Babushka.»

Uma escrita cuidada, com ironia e alguns laivos de humor à mistura, em que os dois pontos são o sinal de pontuação utilizado por excelência, conferindo vivacidade e riqueza ao texto.

Destacam-se, também, dois aspetos que considero curiosos: um pequeno conto introduzido num dos capítulos pela voz de um sem-abrigo de origem judaica e um denso monólogo (porque, na verdade, a personagem não esperava resposta por parte de quem a estava a ouvir) com uma visão crítica sobre o mundo editorial.

«Sinto-me triste por dentro, mas há que recordar que um homem não chora nem se deixa apanhar pelas emoções — um homem atua, faz coisas.» É através desta e de outras expressões, dispersas ao longo da narrativa, que nos apercebemos do quão corajoso e maduro é este menino de dez anos, que, ainda assim, nos gestos e na forma como comunica, não perde a essência do que é ser criança.

Com tantos nomes e personagens (relevantes, mas que não sofrem transformação ao longo do enredo) e somente um protagonista, houve um pormenor que saltou à vista: afinal, qual era mesmo o verdadeiro nome desta criança? Para quem já leu (e para aqueles que vão querer avançar com a leitura desta obra), fico a aguardar as vossas respostas.

Susana Barão

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