Não Saí da Minha Noite, de Annie Ernaux


RELATO ÍNTIMO SOBRE ESQUECIMENTO, DOR E MEMÓRIA 

Pela primeira vez, imaginei claramente a sua vida aqui, para lá das minhas visitas (…) Estou a arranjar uma tonelada de culpa para o futuro. Mas mantê-la em minha casa era deixar de viver. Ela ou eu. Lembro-me da última frase que ela escreveu: «Não saí da minha noite.» (p. 34)

Depois de se sentir mal e de ser hospitalizada, em 1983, e já acusando algumas falhas de memória e comportamentos estranhos, a mãe de Annie Ernaux recebe o diagnóstico da doença de Alzheimer. Na esperança de que pudesse recuperar o dinamismo e a independência que a caracterizavam, Annie leva-a para sua casa, para junto de si e dos dois netos.

Durante este período, Annie começa a escrever pedaços sem ordem dos comportamentos bizarros que observa da sua mãe, de como se sente perante a crescente degradação e perda de faculdades cognitivas e mentais.

Ante a impotência e incapacidade para ajudar a sua progenitora, a mãe de Annie passa a depender dos cuidados de terceiros, sendo internada no serviço de geriatria, no hospital de Pontoise.

Como pode um livro com menos de cem páginas transportar-nos para uma viagem imersiva, em que perguntas sem resposta encontram-se sempre presentes em cada página:

Quem sofre mais? Aquele(a) que vive, mas já não tem consciência de si e dos outros, da sua existência, ou aquele(as) que lhe são mais próximos(as), neste caso, o(a)s filho(a)s?

Como se lida com a perda de memória, com o esquecimento de si mesmo(a), de como se anda, come, veste, higieniza-se? Escovar o cabelo, cortar as unhas, dar de comer à boca. A inversão de papéis: a mãe que se torna filha, numa criança; a filha que se torna mãe, numa cuidadora permanente. E quando a criança/bebé expressa palavras ou frases de quando ainda era adulta, lúcida e dona da sua cabeça e do seu corpo?

Em «Não Saí da Minha Noite», Annie Ernaux apresenta-nos uma escrita incisiva e desarmante; através dos seus relatos curtos, mas minuciosos, consegue, como pouco(as), transformar dor, angústia e culpa (quase) indizíveis em palavras carregadas de sentido.


Susana Barão

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