A Noiva do Tradutor, de João Reis

 

Por fim, levanto-me e vou até à janela: ar fresco. Assim que terminei o livro, consegui voltar a respirar. É o cheiro a enxofre, a estrume, a urina, a alcatrão, a queimado é a imundice dos lugares, das gentes, dos costumes que se acercam deste tradutor rezingão, que reclama de tudo e de todos, menos da sua Helena, a noiva, que parte num navio, deixando o nosso protagonista desolado, embriagado pelo sentimento da saudade.

Ao mergulhar nesta história, o leitor é convidado a colar-se que nem uma lapa ao tradutor, ficando preso aos seus passos, aos locais por onde vagueia e se desloca, às pessoas com quem se cruza, aos pensamentos que o acompanham neste percurso com a duração de dois dias, numa cidade e numa época que desconhecemos; porém, se pudesse escolher, diria que estamos perante uma Lisboa do início do século XX.

São os editores interesseiros e forretas a tirarem-lhe o tapete e a não honrarem os seus compromissos, são os falsos amigos que pretendem, a qualquer custo, ganhar notoriedade no mundo literário, é a senhoria avarenta, cujo processo para obtenção de uma mera vela revela-se um autêntico bico-de-obra... são as viagens no elétrico, um chapéu preto, de aba média, que se perde, é a angústia que o persegue: «... Helena é a única explicação, tudo me entristece terrivelmente, não consigo manter o ânimo o meu ceticismo vence-me sempre, deixo a esperança morrer uma e outra vez, mantendo-a, ao mesmo tempo, viva, parece impossível, porém, faço-o, não sei como».

Uma narrativa contada no presente pela voz do tradutor, com recurso ao fluxo de consciência — as vírgulas, as melhoras amigas para acompanhar o seu raciocínio! Confesso que a aura negra do discurso me deixou, por vezes, arrasada. Pessimista; contudo, infelizmente, realista em muitas das situações retratadas, numa abordagem filosófica da existência humana: «..., no entanto sou um mísero tradutor, não valho o ar que respiro, () talvez tenham razão e não seja digno de fazer reparos, sofro dos mesmos defeitos, sou filho da minha raça, centro o mundo em mim, não conheço outra perspetiva, só vemos o mundo com os nossos olhos».

E quando tudo o resto falha, mas, mesmo assim, queremos provocar alguma reação no outro, «kartofler» é a resposta, a palavra de eleição escolhida pelo tradutor. Se quiserem saber e compreender o seu significado, aconselho-vos a ler este livro de @joaoreis.author até ao fim. Vão perceber que vale a pena!

Susana Barão


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