Uma Paixão Simples e O Acontecimento, de Annie Ernaux

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SOBRE UMA ESCRITA FRANCA, DESPUDORADA — UMA ESCOLHA CERTA DE PALAVRAS

«E o verdadeiro objetivo da minha vida é, provavelmente, apenas este: que o meu corpo, as minhas sensações se transformem em escrita, isto é, em qualquer coisa de inteligível e comum — a minha existência completamente dissolvida na cabeça e na vida dos outros.»

Esta frase, extraída de uma das páginas finais do livro «O Acontecimento», classifica na perfeição aquela que é a voz e a essência literária da escrita de Annie Ernaux, galardoada em 2022 com o Prémio Nobel da Literatura.

«Queria forçar o presente a voltar a ser o passado aberto sobre a felicidade.»

Em «Uma Paixão Simples», a escritora recorre a episódios autobiográficos para dissertar sobre a paixão de uma mulher por um homem; pouco importam as circunstâncias — se ele é casado e ocupado, se ela é divorciada, independente e culta —, mas sim o sentimento em si, o lado carnal, afetivo, amoroso, do quão obsessivo (talvez doentio, mas normal) pode ser estar-se apaixonado(a). Ernaux escreve sobre si para falar dos outros, de cada um/a. Diria que se sente como uma embaixadora, alguém responsável por trazer clareza aos sentimentos e emoções vivenciados por todo(a)s.

Em «O Acontecimento», Annie veste a pele de uma jovem universitária de vinte e três anos, que é confrontada com um problema que poderá prejudicar o seu percurso: uma gravidez indesejada. A obsessão agora é outra: interromper o processo torna-se numa prioridade.

Abortar, na França dos anos sessenta, é proibido, um crime. Resta o caminho da clandestinidade. O detalhe e a crueza das descrições chocam; porém, necessário para dar forma e corpo a esta realidade.

Comparando as duas obras, diria que «Uma Paixão Simples» me conquistou, sobretudo, pela escrita, pela combinação soberba de palavras; que inveja boa: como gostava de escrever assim. «O Acontecimento» marcou-me pelo conteúdo, pela abordagem escolhida. Confesso que (ainda) não tinha lido o que li sobre o aborto daquela perspetiva. 

Susana Barão


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