As primas, de Aurora Venturini

 

UM EXERCÍCIO DE LINGUAGEM, NUMA OBRA EXCÊNTRICA EM QUE SE RI COM CULPA

(…) é uma pena que nunca tenha podido dar palestras devido à minha dificuldade com a palavra falada (…) e ali estava a criação. (p. 97)

Ambientado na Argentina de 1940 e narrado na primeira pessoa do singular, Yuna, a protagonista, conta a sua história e a da sua família — disfuncional, pobre e portadora de múltiplas deficiências —, e daqueles que com ela se cruzam.

O enredo centra-se em duas dinâmicas familiares: a relação de Yuna com Petra, a prima anã, que domina a arte de satisfazer as necessidades de um homem, e Betina, a irmã mais velha, com um elevado grau de incapacidade e consequente dependência, vivendo numa cadeira de rodas.

Há sempre uma nova desgraça em cada episódio, relatados sem piedade e com doses avultadas de crueldade, fazendo parte da ementa ingredientes como violência, mortes, mutilações, violações e aborto... Apesar do choque e da repugnância, continuei curiosa e fascinada com a habilidade da escritora em conduzir uma trama que desconhece limites e nos provoca gargalhadas, daquelas que damos com um grande sentimento de culpa. (Para que fique registado: a palavra «tragicomédia» surge duas vezes.)

Por padecer de «problemas cognitivos», Yuna debate-se com as palavras (mesmo recorrendo amiúde ao dicionário), tendo dificuldade em expressar as suas emoções; a pintura é a sua salvação e, mais tarde, fonte de rendimento e de autonomia. Abomina o uso da vírgula e do ponto final; contudo, quem ler estas páginas descobrirá — quando se conhece bem as regras da sintaxe e pontuação — de como é fácil intuir em que parte estes sinais deveriam constar em cada frase — e em cada parágrafo!

Aurora Venturini, autora argentina, entretanto falecida, escreveu «As primas» aos 85 anos, surpreendendo a comunidade literária com uma obra que cumpre a premissa de quebrar regras tanto na forma como no conteúdo; por esse mesmo motivo, acredito que poderá não ser do agrado de qualquer leitor(a), porém, aconselho muito a sua leitura a quem aprecia jogos de linguagem e uma boa dose de humor negro.

Quem já leu ou quer ler este livro?

Susana Barão


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